Uma Família de Cristãos-Novos do Douro e Minho: Os Paz (1495-1598)

Carlos Manuel Valentim

Introdução

O assunto principal da presente dissertação é uma família de cristãos-novos, de origem espanhola – os «Paz». Estabeleceram-se em Portugal, no Entre Douro e Minho, em finais do século XV. Num primeiro momento analisamos a identidade de mestre João, o patriarca da família, assim como a reprodução familiar e social de todo o grupo familiar, em território português. [...]

A partir de 1530, os Paz começam a enfrentar dificuldades. Duarte de Paz, filho de mestre João, vai para Roma, como procurador dos cristãos-novos portugueses, para impedir que se estabeleça em Portugal a Inquisição. Procedemos à análise da sua actuação durante os oito anos em que se desdobra em contactos, vive na Santa Sé, e se relaciona com o Papa e com os mais altos representantes da Igreja, não logrando contudo impedir a vinda do Santo Ofício para terras portuguesas. [...]

Finalmente, a partir de um outro processo da Inquisição de Lisboa, estudou-se o percurso de Tomé Pegado de Paz, filho de Duarte de Paz. [...]

Nomeado para efectuar certas missões de interesse para Grácia e Joseph Nasci, Tomé de Paz andou de cidade em cidade, de lugar em lugar, convivendo e recolhendo informações junto das comunidades judaicas sefarditas, que viviam em cidades como Ragusa, Salónica, Andreanapolis, Constantinopla. Até que um dia foi preso em Florença, e enviado numa galé, como escravo, a Lisboa. Decorria o ano de 1578.

Os Paz, que foram uma das mais importantes famílias de mercadores cristãos-novos a viver em Portugal, no século XVI, sobreviveram socialmente, após o estabelecimento da Inquisição, mas com pesados custos, pois foram perdendo progressivamente a sua influência social, económica, política e cultural. Porém, o nome «Paz» haveria de atravessar os séculos, sempre associado ao Santo Ofício, e à perseguição religiosa dos cristãos-novos, que ocorreram em Portugal, entre os séculos XVI e XVIII.

COMPOSIÇÃO E REPRODUÇÃO FAMILIAR

Ainda segundo o Professor Gil, maestre Juan Faraz era um jovem em 1496. Quando teria vindo para Portugal, supondo que frequentou, obrigatoriamente, estudos em Salamanca, onde obteve o grau de bacharel? Desde já esclareçamos que João de Paz deveria ter uma idade que mediava entre os Faraz, pai e filho. O pai de Juan faleceu com idade avançada, por volta de 1522. No que tange a mestre João, segundo o seu testamento, pereceu entre 1535 e 1540.

O astrólogo abandonou Castela acompanhado, decerto, pelos seus irmãos Diogo, Genebra, Henrique e Maria. Quando alcançam Portugal estabelecem-se no Norte, onde já se encontrava Rui Mendes, um dos cunhados de mestre João. Consta na Chancelaria de D. Afonso V uma carta de doação da dízima do pescado dos canais do Douro a Rui Mendes, que exercia o cargo de vedor do bispo de Lamego. Mais tarde, aquando dos tempos conturbados da “conversão geral” de 1496-97, Rui Mendes, sendo um dos judeus que permanece em Portugal, recorre para a Chancelaria régia, rogando por confirmação da doação dos canais, pescarias e vargas do Douro em Lamego. Tinha entretanto cessado as funções de vedor do bispado da cidade, e ido incorporar a Fazenda régia no honroso cargo de Contador do Entre Douro e Minho.

O cunhado de mestre João casara em primeiras núpcias com Justa de Paz, certamente irmã do físico, resultando desse casamento três varões: Heitor Mendes, Francisco Mendes e Gonçalo Mendes. Todos eles vieram a residir em Lamego, mas detém funções e cargos no Entre Douro e Minho. Heitor Mendes desposa Isabel, e tem duas filhas, Filipa Mendes e Justa de Paz. Esta que ostentará o nome da avó, veiculando a memória familiar, casa com Jerónimo Fernandes, mercador e rendeiro de Lamego, da família dos «Fernandes». Jerónimo era neto de mestre Rodrigo, e filho de mestre Fernando, afilhado de D. Manuel I, e tinha três irmãos – Rui Fernandes, Jácomo da Fonseca e António da Fonseca.

O Contador de Entre Douro e Minho casa uma segunda vez, escapando-nos a razão por que o fez, possivelmente por viuvez. A nova boda efectua-se com Ana Rodrigues de Carvalho, de quem terá oito filhos, todos com o apelido da mãe. Os três rapazes: João Mendes de Carvalho; Henrique da Cunha, o segundo filho mais velho a quem passará o ofício de Contador de Entre Douro e Minho; Cristóvão Mendes de Carvalho, é outro dos seus filhos; tal como D. Branca da Silva, fereira em Stª Clara; Cecília Mendes de Carvalho; Brites Mendes de Carvalho; e Violante Mendes de Carvalho.

Douto e sábio, de claríssimo entendimento, depreende-se pelas fontes que até nós chegaram que mestre João era muito solicitado pela elite nobiliárquica para prestar serviços de astrologia e medicina. Acabará por abraçar o cristianismo e mudar de nome. As fontes nobiliárias dão-no como natural da praça marroquina de Mazagão, tal como os seus irmãos. Porém, verifica-se que aqueles que são imputados como seus irmãos são afinal seus filhos e sobrinhos, nada se encontrando, em concreto, relativo à vinda de Mazagão do médico de D. Manuel e da sua família. Mas esta cidade marroquina ficou, na verdade, associada à família. Duarte de Paz, o filho mais velho do astrólogo, aí perdeu uma vista em combate, e António Leite, oriundo de uma importante família do Porto que firmará um acordo nupcial com os Paz, é governador de Mazagão na segunda década do século XVI. [...]

Ao cruzar a fronteira, mestre João ter-se-á posto ao serviço dos duques de Bragança. [...]

Como vimos anteriormente, mestre João acumulou as funções de físico e cirurgião do Rei. Obteve esse cargo de prestígio, por certo, quando D. Manuel confirmou as cartas de tenças, os privilégios e antigos cargos detidos por judeus no mês de Maio de 1496, numa clara tentativa de repor a antiga ordem social de que os judeus radicados no reino haviam gozado durante séculos. [...]

Corria o dia 6 do mês de Maio de 1496, quando D. Álvaro de Bragança entra em Portugal com os sobrinhos e o seu séquito, pela fronteira de Elvas. A partir desta data, com a gradual recomposição patrimonial do ducado brigantino, voltaria novamente mestre João e a sua família a servir o Duque, agora em acumulação com os serviços prestados a el-rei D. Manuel. Tem-se conhecimento que, no arquivo ducal da Casa de Bragança, havia muitas memórias deste médico e da sua família. Essa documentação, revelada por uma fonte secundária, perdeu-se na voragem do tempo, mas há registos que confirmam que estes cristãos-novos de origem castelhana residiram inicialmente em Guimarães - centro administrativo do ducado de Bragança. A família irá permanecer na cidade-berço pelo menos até 1511, data do último assento que possuímos, da ordenação menor de um dos seus descendentes, nos “Cadernos de Matrícula de Ordens” da Diocese de Braga.

O primeiro jovem a ser ordenado é Duarte, no dia 19 de Dezembro de 1500; Isidro, um dos seus irmãos mais novos, o último, a 15 de Março de 1511. Depois de se estabelecer no Entre Douro e Minho, a família vai engrossando à medida que os anos vão passando. A prole de mestre João e de Mécia de Paz é numerosa. Ao filho Duarte, o mais velho, vêm juntar-se Fernando, ordenado minorista a 13 de Março de 1505; Diogo, apelidado de «o moço», que faz juramento de ordens a 1 de Setembro de 1505, e Isidro que, como vimos, faz os votos em 1511; Beatriz que casará primeiro com Melchior Salazar, e depois com Vasco Afonso, Brites com Vasco Leite e Maria, com Manuel Figueiredo, são as mulheres da família. Tomás é o mais novo dos irmãos, não adoptando o apelido familiar.

Diogo de Paz tem menos um filho que seu irmão: sete. As raparigas são em número de três: Leonor, Joana e Violante; Francisco é o mais velho dos rapazes, seguindo-se Fernão Lopes, João e António. Os outros dois irmãos de mestre João, Genebra e Henrique, têm, cada um, três filhos. Genebra é mãe de Francisco Rodrigues, Violante e Leonor; enquanto Henrique é pai de Leão, Jorge e Francisco.

Na família dos Paz, damos conta que na primeira geração estabelecida em Portugal antes da “conversão geral” de 1496-1497, predomina a endogamia. Os casamentos têm lugar no interior da estrutura familiar e étnica, funcionando como uma tentativa para não dispersar bens, ao mesmo tempo que se preservam os valores religiosos e culturais. Os nubentes são escolhidos na base de um estatuto similar e na condição de professar o mesmo credo e de descender do mesmo povo: judaico. Mestre João é casado com Mécia, filha de Diogo Rodrigues e Dona Velhinha, que professava o judaísmo publicamente; o filho mais velho desta judia, Rui Mendes, casa em primeiras núpcias com Justa de Paz, certamente uma das irmãs do físico; enquanto Henrique de Paz, irmão de Justa e de mestre João, escolhe Filipa Mendes para sua mulher, muito possivelmente também sua cunhada, irmã de Rui de Mendes; Diogo de Paz casa com Genebra, de ascendência judaica.

Em Guimarães os Paz habitam em Santa Maria da Oliveira, na companhia de outros cristãos-novos portugueses e castelhanos. É o caso de mestre António, o primeiro geógrafo de Entre Douro e Minho; de mestre Fernando e sua mulher Ines Fernandez; de mestre Isaque e Luvylida. [...]

Todos estes cristãos-novos residiam numa área urbana que incorporava a rua de elite do burgo: a rua de Santa Maria, habitada por grande número de comerciantes, mercadores, oficiais da administração concelhia e pelos cónegos da poderosa colegiada situada ali próximo. [...]

II FORMAÇÃO DE UMA REDE MERCANTIL E APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO

1. A Produção de um Espaço Familiar

Os Paz vão construir um poder assinalável ao longo do século XVI. Um poder económico e estatutário, um poder capaz de interferir e modificar acontecimentos na vida económica, social e política. [...]

Cada membro dos Paz é dotado de competências, de uma função e de uma determinada prática específica. [...]

2. O Espaço Vital: um Entre Douro e Minho Alargado

[...] O geógrafo cristão-novo mestre António, em determinado passo do seu texto refere-se à muita água que prolifera na Comarca. [...]

Não terá sido por acaso que apareceu precocemente no Entre Douro e Minho a primeira descrição geográfica em moldes “modernos”. É possível detectar toda uma tradição, inovadora, na percepção daquele espaço. A “geografia” de mestre António de Guimarães escrita em 1512, como veremos adiante, é um ponto de chegada, e vem, de certo modo, no seguimento da “Descrição de Portugal” de 1416 incluída no Livro dos Arautos. Os dados disponíveis indicam que o redactor desta obra habitava nesse espaço e pertencia à Casa de D. Afonso, Conde de Barcelos, futuro Duque de Bragança, filho do Rei. No início do século XVI, a dianteira no campo do saber geográfico continuou a pertencer a um autor que vivia no Entre Douro e Minho, inserindo num grupo social que na realidade tinha necessidade de apreender o espaço onde circulavam os produtos, os capitais e as pessoas essenciais às suas práticas no trato e na mercancia. [...]

3. Uma Rede Familiar e Mercantil

[...]

Os cristãos-novos, após a conversão “geral” de 1496-97, tinham-se disseminado por Portugal e pelos territórios, fortalezas e feitorias, que os portugueses controlavam no Atlântico, no Índico e no Pacífico. Apareciam a cobrar taxas e a tributar impostos, de Norte a Sul; a importar mercadorias; envolviam-se no comércio ultramarino, seguindo o trilho aberto pelos navios lusos.

Aquela importante família de mercadores tem relações estreitas com os Paz, João e Diogo, e interesses comerciais no Entre Douro e Minho. A 21 de Fevereiro de 1511, por exemplo, Luís Vaz de Negro constitui como seu procurador Diogo de Paz, para que receba em seu nome 200.000 reis do almoxarifado de Ponte de Lima. [...]

As alfândegas da comarca de Entre Douro e Minho andaram arrendadas no triénio de 1502-150 a Payo Rodrigues, Gonçalo Rocha, Diogo de Paz, mestre João, Fernão Gonçalves e Pêro Anes. Todos estes homens tinham negócios e interesses nos portos do Noroeste e detinham cargos de importância na gestão da vida local. É muito possível, neste caso, que Pero Anes seja vereador em Vila do Conde, aparecendo nas actas das vereações, em situação de ausente, em 1509. Em 1505 Payo Rodrigues pagou ao Almoxarife, em seu nome, de Diogo de Paz e de Mestre João, a sisa dos panos e mercadorias que se venderam nos anos de 1504-1505, como rendeiros que foram da Alfândega de Vila do Conde.

A 15 de Fevereiro de 1513, no Porto, Álvaro Pereira, recebedor dos Portos de Trás-os-Montes, recebe de Diogo de Paz seis mil reis de panos do ano de 1513. No ano de 1519 a recolha da dízima e da sisa dos panos da alfândega de Caminha ficou a cargo de Diogo de Paz o-velho, que arrematara a sua renda. [...]

A família Paz surge-nos como um bom exemplo desta persistência nos negócios, mesmo correndo risco de perdas de capitais os investimentos surgem, avançam, em muitos dos sectores da actividade produtiva. Diogo de Paz «o velho» é tido como um mercador próspero que intervém activamente na economia urbana, e um dos homens ricos da cidade do Porto que dispõe explorações no espaço rural.

Duarte de Paz, negociador de panos e tecidos, investe parte do seu dinheiro no equipamento de naus que amiúde demandam a Flandres, carregando as apetecidas especiarias e produtos da costa ocidental africana. [...]

Francisco de Paz, à semelhança do seu primo Duarte, também se faz armador e importador de panos. A dez de Maio de 1532, consta um registo do seu navio e da sua mercadoria e o respectivo pagamento do imposto de importação na Alfândega de Caminha. Nesse dia dizimou Francisco de Paz dez mantas lisas de Valença aforadas cada uma em mil reis, nove cargas de pedra, erva-doce.

Na Alfândega de Vila do Conde, nos livros da receita de 1504 e 1505, registam-se vários indivíduos com o nome de Paz: Gomes Paz, cidadão do Porto, um dos grandes importadores da região; João Paz – que bem pode ser mestre João – que importou 400 reis em mercadorias; e João Afonso Paz.

A 19 de Julho de 1519, Diogo de Paz, recebedor dos portos e alfândegas da Comarca do Porto, aufere de sua irmã, Maria de Paz, viúva de Pero Anes, umas peças. [...]

António de Paz, rendeiro de rendas de instituições religiosas, como a da Igreja de Vila Martim, recebe o “ofício” de recebedor das sisas da cidade do Porto. É igualmente negociante dos vinhos que entram na cidade e se vendem nos arrabaldes, que é um comércio em expansão à medida que nos vamos aproximando do século XVII.

Jerónimo Fernandes, marido de Justa de Paz, costumava ir duas a três vezes a Castela, por ano, com um almocreve. No auto que lhe abriram na Inquisição, confessa que " alguas vezes tratava também em officio de marcador de comprar he vender e custumava hir no ano duas, tres vezes a Castela os quais camjnhos de Castela elle réu fazia asi do sábado como em os outros dias e no dito dia do sábado camjnhava he se alevamtava cedo e chamava seu almocreve pera caminharem como em outro qualquer dia da somana no qual dia do sábado elle réu comprava he vendia e fazia suas caregas asi em Castela como em outras partes he em sua casa como em outro qualquer dia de trabalho da somana sem hua defferença."

Ceder empréstimos de dinheiro era uma forma de aumentar o rendimento familiar para muitos sefarditas, quer se tratasse do pequeno mercador ou de famílias de grandes banqueiros. Há registos que evidenciam, numa época em que circulava maior quantidade de numerário, terem os Paz concedido crédito à alta nobreza cortesã e a diversas instituições sociais. Mestre João nomeia mestre Tomás, seu cunhado, procurador em Santarém no ano de 1503, para cobrança de uma dívida do duque de Bragança. [...]

O intenso movimento de mercadorias na cidade estava a gerar fundos avultados no despacho de produtos. A grande actividade da Alfândega traduz, por conseguinte, o volume de comércio crescente e a ampliação das relações internacionais que passam pela principal cidade nortenha. Miguel Gomes Bravo, Duarte Manrique, Diogo de Paz, Dinis Eanes, Miguel Fernandes Pina, todos cristãos novos, têm um vastíssimo campo de actuação no comércio e no trato, que explica o seu poder e as suas relações sociais. Os que arrendam as alfândegas desta região, como é o caso de família Paz, investem fundos nas Ilhas, implementam o cultivo da cana açucareira, do pastel, da produção de vinho, e mais tarde aparecem no Brasil a investir nos engenhos, em África a traficar escravos, na França, Inglaterra e Flandres a negociar panos e a transportar produtos, como armadores. A sua ascensão social, e o aumento do seu poder económico, caminham a par do surto urbano e da importância crescente da praça do Porto. [...]

[...] Mestre João despachava, como almoxarife, com o seu cunhado Rui Mendes, Contador de Entre Douro e Minho; Francisco de Paz, filho de Diogo de Paz, escriturava os Contos no Porto, onde o pai era recebedor das rendas; outro cunhado de mestre João, mestre Tomás, encontrava-se no número do Porto; o cunhado de ambos, Diogo e João, Pero Anes, encontrava-se como recebedor numa das Alfândegas com maior movimento e transacções comerciais, Vila do Conde. Ao mais alto nível do Estado encontravam-se os sobrinhos do astrólogo, no Desembargo e na Justiça régia, Cristóvão Mendes de Carvalho, Francisco Mendes, Heitor Mendes.

Diogo de Paz destaca-se como Recebedor do almoxarifado do Porto, entre finais do século XV e as duas primeiras décadas da centúria seguinte. A sua acção só encontra correspondência no entrepeneur de Joseph Schumpeter: espírito audaz, indivíduo inventivo, criador de inovação, que quebra as fronteiras da rotina e dinamiza com sucesso os seus empreendimentos financeiros. Caminha, Aveiro, Vila do Conde, e sobretudo o Porto, perfilam-se nos negócios deste sefardita. Chega a entregar à Fazenda, no acto de prestação de contas, seis, sete, dez milhões de reais. A 6 de Agosto de 1521, firma um contrato com a Fazenda, cujo Vedor era o Barão de Alvito, para arrecadar a sisa dos panos da Comarca de Entre Douro e Minho, Aveiro, Coimbra, juntamente com os direitos, que devia embolsar, das alfândegas de Buarcos, Vila do Conde, Viana do Castelo e Caminha. Era muito o dinheiro a passar pelas mãos deste Paz. E o poder confiava-lhe essa tarefa, sem contestar a sua competência.

A actividade do seu irmão João estendia-se mais para ao interior. O astrólogo é, no princípio do século XVI, almoxarife de Guimarães, de Torre de Moncorvo e de Vila Real, entrepostos de avultadas trocas comerciais com Castela, por via terrestre. Os almoxarifados eram centros de recebimento de rendas e taxas. A sua fundação remontava ao domínio árabe. Para aí se canalizavam os direitos de portagem da circulação de mercadorias, do dízimo e os direitos do rei.

Não eram incompatíveis as funções que mestre João exercia como cosmógrafo, físico e cirurgião, com as de administrador e arrendador das alfândegas. De uma maneira geral, os judeus peninsulares, e depois os cristãos-novos, não se ocupavam duma só actividade económica, sendo muito natural, e frequente, combinarem, por exemplo, o exercício da medicina com o comércio.

Os filhos e os sobrinhos dos irmãos Paz seguem os seus ofícios, trabalhando, logo que atingem a idade adulta, em prol da rede de negócios familiar. António de Paz, filho de Diogo de Paz, é nomeado Recebedor das sisas dos panos de Entre Douro e Minho a 27 de Fevereiro de 1526; Francisco, o irmão mais velho de António, é escrivão da Fazenda do Porto. Duarte de Paz estende a influência da família mais para sul - D. João III concede-lhe, a 8 de Junho de 1525, carta de Requeredor dos portos secos da comarca da Beira, centro de um rendoso comércio com a Castela.

Duarte de Paz será ainda nomeado, quatro anos mais tarde, feitor da sisa dos panos da alfândega do Porto; cargo que passará a seu irmão Diogo em vésperas de ir para Roma. Nas contas que são prestadas à Fazenda em 1534, Duarte de Paz é referido como “recebedor que foy da mea dizima e sysa dos direitos das sedas que vieram de Castella [...].”.

A família vai rapidamente disseminar-se por todo o país. Para Lisboa viera João de Paz, um dos filhos de Diogo de Paz. João era feitor da nau “Espírito Santo”, e a Casa da Moeda de Lisboa confiou-lhe, em 1521, 184 marcos, 6 onças, 3 oitavas e 26 grãos de ouro fino. Um dos seus irmãos, Fernão Lopes, vivia, igualmente, na capital. Integrava o Conselho académico do Estudo Geral de Lisboa no ano de 1532, e regia a cadeira de Cânones. Em Tavira residia Francisco Rodrigues, filho de Genebra de Paz. Um seu primo homónimo, Francisco, filho de Henrique de Paz, morava em Braga com o seu filho Jorge, escudeiro Real, enquanto Fernão de Paz, um dos filhos mais novos de mestre João, é moço da câmara da rainha D. Catarina, mulher de D.João III, e um dos servidores do príncipe D. Duarte.

Lamego, Vila Flor, Elvas, Barcelos, Vila Viçosa, são outros tantos destinos da família. A rede de contactos e influências não se ficava pela Arcebispado de Braga. Estendia-se ao “número” do Porto, através de mestre Tomás, físico, cunhado de mestre João; à Corte, com mestre João, Fernão de Paz, Duarte de Paz, mestre Filipe e mestre Tomás; à Câmara do Porto (Diogo de Paz «O Moço»); à Misericórdia (o mesmo Diogo de Paz); à Fazenda; à Contadoria de Entre Douro e Minho - várias mulheres da família casam-se com filhos de contadores dessa Comarca; à Corte do duque de Bragança, primeiro com mestre João e depois com seu filho Tomás; à Universidade, onde leccionam Fernão Lopes de Paz, mestre Filipe e mestre Tomás; às várias alfândegas, que uniam vários pontos do país. Como funcionava esta ampla rede? Qual o seu verdadeiro poder?

Temos prova que, pelo menos, funcionava de forma expedita. Mestre Filipe, um dos astrólogos que D. Manuel nomeia para reformar os estudos de Matemática na Universidade de Lisboa, e leccionar uma cadeira de Astronomia em 1513, juntamente com mestre Tomás Torres, que muito possivelmente é o cunhado de mestre João – na coincidência, e no facto de João de Paz, anteriormente, ter estado ligado aos meios náuticos, estudando regimentos e estrelas -, é recebedor da sisa do Paço da Madeira em Lisboa, trabalhava nas alfândegas e era mestre em Medicina. A 14 de Julho de 1523, já na posse da sua cátedra, mestre Filipe passa uma procuração, na vila de Tomar, a Diogo e Francisco de Paz, pai e filho, para receberem na alfândega de Vila do Conde a quantia de 100 mil reais despachados a favor de Álvaro de Castro, pai e herdeiro de Nuno de Castroto, falecido na Índia. [...]

Mas a rede montada pelos Paz chegava aos mais altos escalões da Fazenda. Repara-se que Diogo de Paz (o moço) é o representante e procurador, na cidade do Porto, do Conde Vimioso, Vedor da Fazenda. A 26 de Outubro de 1538 é encarregue de arrecadar as rendas e dívidas que o Conde e seus filhos, D. João e D. Manuel, tinham a haver. Os primos de Diogo de Paz (o moço), todos com ofícios e funções na Justiça régia (Heitor Mendes, Cristovão Mendes de Carvalho, Francisco Mendes), deram, muito possivelmente, um precioso contributo à rede familiar, tendo em conta que eram frequentes as demandas entre os oficiais da Fazenda e o povo, e entre os próprios Almoxarifes, Recebedores, rendeiros e outros oficiais. [...]

Duas das corografias mais citadas, conhecidas e inovadoras do século XVI, a “Descrição de Entre Douro e Minho”, de mestre António de Guimarães, escrita em 1512 e a “Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas” (1531-1532), da autoria de Rui Fernandes, estão associadas à família Paz. Perante os dados que dispomos, podemos asseverar que os dois textos nascem relacionados com a actividade económica, social, política e cultural destes cristãos-novos. Um dos autores, Rui Fernandes foi mesmo identificado como membro da família, cunhado de Justa de Paz, neta de Rui Mendes e sobrinha-neta de mestre João de Paz. Mestre António, respeitado físico vimaranense residiu inicialmente no mesmo espaço dos Paz, na Vila de Guimarães, em Santa Maria da Oliveira.

O «Tratado sobre a província d'antre douro y minho y suas avondanças, copilado por mestre António Fisico e Çelorgiam morador na vila de Guimarães e natural della», foi um dos textos de geografia manuscritos com maior aceitação entre os séculos XVI e XVIII. É surpreendente para época a forma como mestre António quantifica dados de natureza demográfica, económica e financeira, ou descreve minuciosamente a geografia religiosa e militar de Entre Douro e Minho no princípio do século XVI. Que o pequeno texto brotasse directamente do conhecimento que um dos grupos familiares mais prósperos da Região (os Paz) tinha da realidade económica, social e financeira desse espaço, é um facto, pertinente, que deve ser tomado em consideração. [...]

Uma outra importante indicação adicional assinalava: "Mestre António, X.N., [...], morador em Guimarães e falecido em 1533, é o conhecido autor do Tratado sobre a província de Entre Douro e Minho e suas avondanças, que compôs em 1512." Esta informação, que fora colhida no Arquivo Distrital de Braga, nos Cadernos de Matricula de Ordens de Menores, pelo investigador Eugénio de Cunha Freitas, permite-nos saber que no "Anno do nascimento de nosso Señnor Jhesus Christo de Mil e Quinhentos e 4 annos, seis dias do mês d’abril (...) " era ordenado in minoribus "Francisco filho de mestre António e de sua molher Francisca Rodriguiz nouos christãos moradores em Guimarães na freguesia de Samcta Maria d'Oliueira."

Nessa documentação há duas notícias importantes sobre a vida do médico que vale a pena reter. Por um lado, o nome e número de filhos ordenados: Henrique, Francisco, Aires e Duarte; por outro, o lugar da sua residência: Santa Maria da Oliveira. Neste local moravam muitos cristãos-novos e grande parte da elite de Guimarães, principalmente religiosos e gente abastada. É em Santa Maria, como vimos, que residiam os Paz. [...]

Fomos encontrar mais dois dados importantes, registados nas chancelarias reais. O primeiro dá-nos conta que a 1 de Outubro de 1498 "Mestre Antonyo morador em a vila de Guimarães" requereu a carta de medicina. Anos mais tarde, em 1521, a 18 de Fevereiro, D. Manuel concedia "licemça a Mestre Amtonio fisyco e celorgiam morador em Guimaraes para que ele possa [andar] em mula".

No primeiro caso, o pedido de confirmação da Carta de Medicina é explicado pelas novas regras exigidas à integração da comunidade judaica, para os que optaram por permanecer em Portugal, promulgado que estava o édito de expulsão em 1496- 1497. A documentação não nos revela se o cirurgião terá mudado o seu nome. Ficará conhecido por "mestre António de Guimarães" ou simplesmente "mestre António". Mas o seu nome completo, citado por frei Rafael de Jesus, ele próprio um vimaranense, cronista-mor do reino em 1683, era "António da Costa de Miranda [...] Licenciado e natural de Guimarães". Não há dúvida que mestre António fazia jus à sua naturalidade, dizendo-se nascido e criado no Entre Douro e Minho - "amor e afeição que tenho aa natureza e aa comarqua onde naçy e me criey (...)"

Em resumo, interessa sublinhar dois factos que alteram substancialmente o conhecimento que tínhamos, até ao momento, do autor que concebeu no princípio do século XVI, o “Tratado da Província de Entre Douro e Minho”. Em primeiro lugar, a sua condição de cristão-novo ; em segundo lugar, a circunstância de ser membro da Confraria do Serviço de Santa Maria, importante irmandade religiosa, bem implantada na “cidade berço”, estendendo a sua influência para além do estrito limite urbano vimaranense. A estes importantes dados, vêm juntar-se dois outros: o nome completo do afamado médico (António da Costa de Miranda) e o seu grau de estudos (Licenciado). Estas novidades possibilitam, estamos em crer, um melhor esclarecimento de como foi possível a um autor do início do século XVI recolher tanta e tão variada informação sobre um espaço, um espaço físico, social e económico. Informação que só era acessível a um restrito grupo de pessoas e entidades. [...]

[...] O Estado vai preparando metodicamente beneficiações nas várias estruturas: Trás-os-Montes; Beira; ao longo da fronteira alentejana, como se constata nas cartas enviadas aos funcionários e nos registos das contas do que se despendia nas obras, em Miranda, Sabugal, Alfaiates, Moura, Olivença, Mértola. [...]

III MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE E PODER

1. A Mobilidade Social Ascendente numa Sociedade de Ordens

[...]

2. Expansão Patrimonial e Poder Social. A Aliança com os Pegados, Mesquitas, Brandões e Leites

[...]

Muitas das famílias de cristãos-novos, em Portugal, uniam-se entre si, mas o impetuoso progresso económico e social que experimentavam no primeiro quartel do século XVI, levou-as em muitos casos a efectuar vantajosos acordos nupciais com mercadores cristãos-velhos e com sectores da nobreza. Como resultado, os seus membros acabaram por penetrar todos os campos, médios e superiores, da vida social e económica da comunidade portuguesa, à semelhança do que aconteceu na vizinha Castela.

Pelo menos dois dos homens da geração seguinte optam por casar com mulheres que partilham a sua condição. Francisco, filho de Diogo de Paz, casa com Isabel Rodrigues; Diogo de Paz, o moço, filho de mestre João, tem como cônjuge Ana Manrique, que suspeitamos ser filha de um cristão-novo associado à Alfândega do Porto, Duarte Manrique. Já Duarte de Paz, contrariando esta tendência, vai estender a influência da família para Sul, casando com Catarina Pegada, de Elvas, de quem terá dois filhos: João e Tomé. Este último, é apelidado nos autos da Inquisição de “meio cristão-novo”, o que significa que Catarina era de uma família de cristãos velhos do Alto Alentejo, residentes em Elvas, cidade por onde se fazia o controlo do movimento comercial por via terrestre com Castela. Exercendo o cargo de oficial da Coroa como Requeredor dos Portos secos das Beiras, por um lado, e de importador de tecidos castelhanos, por outro, ao longo de uma ampla linha de fronteira, não nos pode surpreender que o futuro embaixador dos marranos em Roma tenha estabelecido contactos frequentes, intensos e próximos com os grupos sociais que dominavam comercial e politicamente esse espaço. Há registo na vila de Elvas de alguns indivíduos com o nome «Pegado», em posições de relevo na administração do município em finais do século XV. Nas Cortes de Lisboa de 1498, nos capítulos especiais de Elvas, um dos procuradores do Concelho alentejano é Álvaro Pegado, cavaleiro do Rei. E entre os que assinam a petição apresentada às Cortes surge, em segundo lugar, o nome de João Pegado, muito provavelmente o pai de Catarina, que é denominado nos autos da Inquisição de seu neto por “João de Gronga”. Quando, mais tarde, a Inquisição de Évora estender o seu braço tentacular sobre todo o Alentejo, comparecerão para interrogatório junto dos juízes várias pessoas com o apelido “Pegado”, de influentes famílias da região de Évora.

Alcançada a fortuna, verificamos que a partir do primeiro quartel do século XVI os Paz praticam deliberadamente uma estratégia de alianças com outras famílias, que tem por objectivo uma exogamia local concebida em termos de património, aliando-se aos influentes e ricos grupos familiares da sua região. Uma filha de mestre João casa inicialmente com Melchior Rodrigues Salazar, natural de Valladolid, que é juiz ordinário em Bragança. No Porto, Beatriz aparece casada com o Dr. Vasco Afonso, cidadão ilustre da cidade, a quem mestre João de Paz se dirige com grande afeição no seu testamento.

Maria de Paz, filha de Diogo de Paz o-velho, une-se à família dos Mesquitas. A família Mesquita aparece associada à Casa do Marquez de Vila Real - são servidores e ouvidores em suas terras, havendo um tronco da família que vive na cidade de Guimarães. É aí que Diogo Pero Lopes de Mesquita presta serviço ao Duque de Bragança, possuindo próximo da cidade a Quinta da Corugeira, adquirida como dote do casamento com Isabel Correia, filha de Pero Lopes Correia, criado do mesmo Senhor. O filho mais velho que resultou deste casamento, Pero Lopes de Mesquita, veio a ser criado de D. António de Noronha (1465-1551), 1º Conde de Linhares, desposando Maria de Paz. A 6 de Maio de 1519, faz-se procurador bastante do seu sogro, para receber das mãos do almoxarife da Alfândega de Vila do Conde 157.747 reis, o que atesta o seu envolvimento nos negócios da família da sua mulher. A ligação a D. António de Noronha, por intermédio de Pero Lopes de Mesquita, traduzia-se no ganho de uma posição de estratégica para os Paz, se atentarmos no peso que o 1º Conde de Linhares vai adquirindo na Corte e no Governo de D. João III, que o nobilita em 1532.

Há uma fonte, que nos mostra muita claramente que Maria de Paz é filha do irmão de mestre João, Diogo. Num documento da Inquisição, António de Paz, filho de Diogo de Paz, sobrinho do astrólogo, é citado como tendo acompanhado o seu cunhado, Pero Lopes de Mesquita, à Sé do Porto, em várias ocasiões.

Pero Lopes de Mesquita vem viver para o Porto, e adquire rapidamente a dignidade de «cidadão». Em 1534 detém o cargo de almotacé do Concelho. Um dos seus dois tios, Fernão de Mesquita, estava casado com Brites Mendes de Carvalho, filha do Contador de Entre Douro e Minho, Rui Mendes, cunhado de mestre João de Paz. O outro tio, Diogo de Mesquita, era pajem do Marquês de Vila Real.

Mécia, filha de Francisco de Paz, neta de Diogo de Paz, o irmão de mestre João, casou com Braz Pereira Brandão, pajem do infante D. Fernando, filho de D. Manuel I, e amigo chegado de Francisco de Holanda, que ficava em sua casa quando se deslocava ao Porto. Na obra Pintura Antiga, o pintor e arquitecto de D. João III e do infante D. Luís alude à relação de amizade que mantém com Braz Pereira Brandão.

A família dos Brandões, que funda uma capela no convento de S. Francisco do Porto, à semelhança dos Paz, acumula uma extraordinária fortuna ao longo do século XV, com base numa vigorosa actividade financeira na Contadoria da Fazenda daquela cidade nortenha. Braz Pereira Brandão, que casou em primeiras núpcias com Mécia de Paz, era filho de Fernão Brandão e de uma filha do cronista Rui de Pina, Isabel de Pina. Um dos seus tios, Diogo Brandão, Contador no Porto, dá ordem em 1510 para que o almoxarife ou recebedor de Ponte de Lima pague 72.000 reis, por mandado do Rei, a Diogo de Paz, avô de Mécia. Tanto o pai, como este tio de Braz Pereira Brandão, foram ambos poetas do Cancioneiro. Esta vertente cultural dos Brandões do Porto não é indissociável da sua capacidade financeira e da sua projecção social. Se as correntes culturais do Humanismo não lhes foram estranhas, como é testemunhado pelas amizades que mantém com pintores, cronistas e poetas, isso diz bem até que ponto se integravam no seio de uma elite financeira e social do Porto.

A 12 de Agosto de 1569, Braz Pereira Brandão, fidalgo da Casa do d’el Rei, Cavaleiro da Ordem de Cristo e pajem que havia sido do infante D. Fernando, juntamente com a sua mulher, Mécia de Paz, faz doação da quinta de Val de Amores, que ficava no outro lado do rio Douro, frente a Miragaia, à Província da Piedade da Ordem de S.Francisco. A doação tinha o propósito de permitir aos monges menores da regra de S. Francisco edificarem um mosteiro sob a invocação de Santo António, ficando ambos os doadores por padroeiros. Era ao tempo, bispo do Porto, D. Rodrigo. O convento que veio a ser construído, tinha dimensões modestas, mas a sua cerca bordejava as águas do rio Douro. Revela a tradição que o claustro da igreja era de boa construção.

Mécia, mais uma Paz com o nome da avó, nascida do casamento de Diogo de Paz-o-Moço e de Ana Manrique, casou com António Leite, senhor do morgado de Ramalde, filho de João Dias Leite e de Catarina Carneira. Mécia era a segunda mulher da família a associar-se a um dos descendentes dos Leites. Vasco Leite, citado por «Doutor. Vasco Leite», vereador da cidade em 1559, é referido como cunhado de Duarte de Paz, num documento da Inquisição.

Do casamento de Mécia de Paz com António Leite nascem quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. Um deles, Jorge Leite, irá dedicar-se à vida religiosa; outro, Diogo Álvares Leite, passará a viver nas casas do Padrão de Belmonte, pertença anterior de seu avô, Diogo de Paz o moço, sucedendo-lhe da mesma forma nos cargos da Alfândega do Porto e nos pagamentos ao Convento de S. Francisco. [...]

Rui Mendes, irmão de Mécia de Paz, a mulher de mestre João, encaminhará os filhos do seu segundo casamento, para acordos matrimonais proveitosos. Passada uma época em que predominou a endogamia na família, é o próprio Rui Mendes que procurou fora do restrito circulo familiar um segundo cônjuge. O seu filho mais velho, deste segundo casamento, João Mendes de Carvalho ligou-se a duas importantes famílias do Porto. Casando primeiro com Cecília Figueiroa, filha de João Figueiroa, e mais tarde com Catarina Anes de Madureira.

Segundo o testemunho de uma das suas sobrinhas-netas, Maria de Paz, mestre João de Paz, o grande obreiro inicial desta política de casamentos, era acusado de traidor e censurado entre os cristãos-novos por casar as suas filhas e filhos com cristãos-velhos.

3. Ascensão Social e Poder Simbólico: uma Elite numa Sociedade Corporativa

Comecemos pelas Ordenações de Menores. Os mais jovens da família viram os seus nomes inscritos nos livros das Matrículas de Ordens da mais poderosa Diocese do Reino (Braga), e foram ordenados “in Monoribus”, concluindo os estudos que os podiam levar a uma vida religiosa. Mas o objectivo era bem outro. Os pais, que haviam sido marginalizados socialmente e chegado em dificuldades do outro lado da fronteira, optaram pela conversão ao catolicismo, e tinham presente a necessidade de uma formação académica de qualidade para os seus filhos, que mais tarde, adquirida a formação em gramática, retórica e aritmética, e ficando a saber ler, escrever, contar e fazer cálculos aritméticos, podiam auxiliar na gestão dos negócios da família, sucedendo com sucesso na administração dos activos familiares, ou concorrer para os lugares mais apetecidos na máquina fiscal do Estado. A educação funcionava, pois, como um instrumento de reprodução da ordem social, e os Paz tinham bem presente essa asserção. Afinal, os que nascem em famílias de poderosos comerciantes não têm necessidade de sair do seu meio, pois aí encontram todas as oportunidades de aprendizagem e promoção.

Seguir uma vida religiosa, habilitava um jovem a concorrer à obtenção dum benefício eclesiástico, excelente condição para início de uma carreira clerical. Os pais apresentavam ao Bispo os filhos ainda muito jovens, que ficavam ao abrigo do foro especial de clérigos, além de outras regalias sugestivas. Havia quem solicitasse Tonsura e Ordens Menores para os seus dois, três, quatro, cinco e mais filhos. Ficando sempre salvaguardada a opção dos clérigos de primeira Tonsura e os Minoristas poderem abandonar por sua livre e espontânea vontade o estatuto de clérigos e casar. É compreensível a razão dos progenitores apresentarem mais do que um filho para receber a clericatura: a esperança era a de que os seus filhos obtivessem um benefício eclesiástico. E mesmo que depois não viessem a incorporar o Clero secular ou regular, como de facto sucedeu inúmeras vezes, abandonavam a carreira eclesiástica e seguiam outras profissões. Este foi o caminho escolhido e trilhado pela segunda geração dos Paz, desde que a família se estabelecera em Portugal. Com excepção de Jorge de Paz, todos os seus primos preferiam seguir os passos dos seus pais e mergulhar numa vida ligada ao comércio e à cobrança de impostos.

Jorge de Paz, estudante em Salamanca. A 4 de Novembro de 1512 é ouvido sobre Pedro Santispiritus, que se tinha apoderado da Cátedra de Medicina. Ficamos a saber que tinha ouvido mais de quatro anos de Medicina. Vide Armando Jesus Marques, Portugal e a Universidade de Salamanca. Participação de escolares lusos no governo do Estudo, 1503-1512, Salamanca, Edciones Universidad de Salamanca, 1980, p. 302 fl. 403.

Mestre João tem um cargo de relevo social, como físico e cirurgião do Rei, mas os seus filhos e sobrinhos vão seguir, igualmente, os degraus da promoção social. Duarte de Paz acompanha o Duque de Bragança, D. Jaime, em 1513, na expedição a Azamor. O Duque armara às suas próprias custas cinco mil infantes e quinhentas lanças, que recrutara nas suas terras. Era neste exército que seguia o futuro procurador dos cristãos-novos. O pai investira na sua formação, e agora chegara a altura de, nos campos do Norte de África, fazer o seu baptismo de guerra, para adquirir as insígnias de cavaleiro. Duarte envergava o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo, ganho pelo serviço militar nas campanhas africanas, com perda de uma vista. Anos mais tarde, a 14 de Junho de 1530, com o título de “caualeiro de minha casa” D. João III deixará bem expresso que tem a sua inteira permissão para que goze de todos os privilégios de cavaleiro, ainda que não tenha cavalo.

Diogo de Paz, irmão de mestre João, é mencionado na documentação como “cavalleiro da nossa casa”; o astrólogo é dado como possuidor de cota de armas e cidadão; o seu filho Diogo, além de ver o seu ordenado aumentado, pelos bons desempenhos, é denominado, por Carta de 15 de Fevereiro de 1534, “cavaleiro de minha casa”. Rui Mendes, o irmão de Genebra de Paz, cunhado de mestre João, é cavaleiro assim como todos os filhos do seu segundo casamento.

Contrapondo-se à esfera privada, domínio da família e das necessidades, a esfera da polis oferecia-se como uma meta a alcançar por muitos sefarditas. A participação na vida da cidade e nas decisões políticas de domínio público, nos negócios da res-pública, foi uma ambição perseguida por um dos Paz: Diogo, o filho de mestre João. O colégio camarário não permite inicialmente a satisfação das suas ambições, e ignora os provimentos da Coroa a seu favor. Mas Diogo não desiste, e move uma segunda vez influências junto do Rei. A 27 de Junho de 1528, D. João III solicita aos oficiais da câmara do Porto que nomeassem Diogo de Paz o-moço, almotacé. Na nova provisão pode ler-se: “E nam fazendo o dito Dioguo de Paaz almotacee o dito mês [Agosto] mando-uos que mandes voso bastante procurador a esta Corte com quãesquer embarguos que tyverdes ao nom fazerdes como em mynhas prouysões pasadas vos hora mandados ho quall vira requerer ho dito casy diamte ho juiz de meus feytos […]”.

Exercer as funções de almotacé era de capital importância para os cidadãos que tinham a pretensão de alcançar os mais altos cargos do município – o «cursus honorum» concelhio. E encontrar-se plenamente integrado na cidade dos homens, significava uma integração mais efectiva na sociedade e possuir direitos inalienáveis. Aos poucos, Diogo de Paz vai intervindo nas decisões camarárias e ganhando o respeito da assembleia de eleitos do burgo.

Alguns dos membros da família tinham “morada” no paço, constando na lista de recebedores de tenças. Mestre João usufruiu no tempo de D. Manuel uma tença nos Armazém da Índia, e passou a receber oitocentos réis com D.João III, entre os físicos do paço; Fernão de Paz encontra-se entre os “moços da câmara” de D. João III, com direito a três quartos de cevada por dia e quatrocentos e seis réis, transitando desse cargo da corte da rainha Dª. Catarina; Francisco de Paz integrava-se entre os “xaramelleiros” que estavam na Corte; Jorge de Paz, irmão de Francisco, ambos filhos de Henrique de Paz, irmão de mestre João, está incluindo nos “homens do thesouro”, como “homem da armaria. Por sua vez, Francisco de Paz, que fora em tempos escrivão dos Contos do Porto, queixava-se que com a venda do ofício “ficava sem nada”, e solicita em 1520 uma mercê de três mil reais, que é prontamente concedida por D. Manuel.

Todos os filhos, homens, de Rui Mendes ocupam altos cargos no aparelho Judicial da Coroa, elevando-se, dessa forma, ao cimo da pirâmide social. Heitor Mendes, é meirinho e cidadão de Lamego; o seu irmão Francisco, cidadão lamecense, é Juiz de Fora em Viana do Castelo. Os outros filhos do segundo casamento, saliente-se Henrique da Cunha, Contador de Entre Douro e Minho, é “cavaleiro da casa do Rei”; o seu irmão Cristóvão alçou-se, primeiro, ao cargo de Corregedor da Beira e Riba Côa, Chanceler da Casa do Cível e por fim Juiz desembargador. Letrados, com formação académica, estes homens alcançam uma posição notável na burocracia do Estado.

Jerónimo Fernandes, genro de Heitor Mendes, marido de Justa de Paz, que tem a dignidade de «ciadão», detém por várias vezes o cargo de almotacé de Lamego. O seu irmão Rui é escudeiro da casa do Rei. Não há dúvida que estamos em presença de um elite local, nortenha, composta por cavaleiros e distintos cidadãos.

Em 1536, mestre João institui uma capela em S. Francisco do Porto. No seu leito de morte, o médico e mercador, ilustre cidadão do Porto, dita o seu testamento. A sua última vontade, é ser enterrado numa capela do mosteiro, que tinha mandado erguer, deixando por perpétuo administrador o seu filho Diogo, e como obrigação de renda em cada um ano três mil reis para os frades de S. Francisco, em troca da celebração de missas por sua alma e de sua mulher. Ficaria ali, num túmulo de um convento - que servia de panteão para muitas das famílias ricas da cidade, como os Carneiros ou os Brandões - de fronte para o rio, próximo do porto e da Alfândega onde a sua família fizera tantos e tão diversos negócios. Um local em que os Paz desenvolveram uma relação muito particular com o tecido urbano.

O tipo de residência era outro símbolo de distinção social. Segundo a informação veiculada pelos genealogistas, parte da família que residia no Porto, habitava na Rua de Belmonte, rua de grande dinamismo comercial durante toda a Idade Moderna, escolhida pela gente mais rica ligada ao comércio. Aí se situava o melhor de todas as casas urbanas, a de três sobrados. Mestre João é referido no seu testamento como morador nesse lugar, e a tradição nobiliária, cita-o como possuidor de umas casas no Padrão de Belmonte. Mas nem todos os Paz moravam na rua de Belmonte. Uma outra parte residia na Porta do Olival, onde se situara em tempos a sinagoga do Porto. António de Paz é um dos que possui moradia nessa área urbana, mas parte dos seus bens patrimoniais também se encontram localizados na Rua de S. Miguel. Há por isso quem possua casas simultaneamente em dois lugares. Beatriz de Paz, uma das filhas de Diogo o-velho, solicita consentimento ao senado da Câmara, a 10 de Fevereiro de 1560, para vender a Francisco Gonçalves, sapateiro, uns pardieiros na rua de S. Miguel.

Na vereação de 22 de Junho de 1549, Isabel Rodrigues, filha de Francisco de Paz, sobrinha de Beatriz, solicita autorização para vender umas casas na Vila das Barreiras. Deduzimos, que os bens imóveis da família se encontravam disseminados pela cidade do Porto, nos locais mais emblemáticos de residência dos que se dedicavam ao trato e à mercancia, num espaço urbano que I.S. Révah integra no “gueto” do Porto, compreendendo o noroeste da cidade: ruas de Belmonte, das Taipas e de São Miguel.

São significativos os privilégios de distinção social concedidos pelo Rei. Privilégios que permitem a quase todos os membros masculinos da família andarem em besta muar de sela e freio. Duarte é autorizado, inicialmente, a andar de mula a 16 de Novembro de 1525; Isidro tem a autorização concedida a 16 de Abril de 1528; mestre João obtém esse privilégio a 16 de Junho de 1528; Francisco de Paz, o filho de Henrique, morador em Braga, tem permissão para andar em mula ou faca a 10 de Fevereiro de 1532; e António de Paz a 22 do mesmo mês.

A parte feminina da família Paz não exerceu um papel menor. Pelo contrário. Quando a Inquisição se instalou e a família se dividiu, a ala feminina teve um papel importante na salvaguarda da riqueza, da mobilidade social familiar, e na reabilitação do seu prestígio social: primeiro, diante da Inquisição do Porto em 1542, em seguida nas reuniões da Câmara para cuidar dos interesses da família.

Outra das vias que os Paz escolheram para a sua promoção social, foi o ingresso nas ordens religiosas. Além de Duarte de Paz, comendador da Ordem de Cristo, António e Isidro de Paz, primos, filhos de Diogo o-velho e mestre João, respectivamente, compram o hábito para ingressarem nas ordens de Avis e Santiago.

A Universidade acolheu igualmente alguns elementos desta família. Jorge de Paz, estudara em Salamanca e Roma, e interveio na vida académica, no corpo de alunos daquela primeira escola. Um dos seus primos, Fernão Lopes de Paz, viera para Lisboa, tornando-se um professor conceituado, e já integrava em 1542 o Conselho académico do Estudo Geral de Lisboa, tendo a seu cargo a regência da cadeira de Cânones.

4. As Armas – o nome e o sangue gravados a ouro.

A tradição documental não nos esclarece de que forma o nome Paz foi atribuído a uma família de judeus que imigrara de Castela para terras portuguesas. Nos anos conturbados de 1496 e 1497 aparecem, após a conversão “geral”, vários físicos e cirurgiões cristãos-novos com apelido de Paz. Um de entre todos vai emergir, como distinto astrólogo da Corte, físico e cirurgião do Rei, oficial das alfândegas do Norte do Reino e cobrador de impostos: mestre João, morador, inicialmente, em Guimarães, e depois no Porto. Esfumou-se no fluir do tempo o registo do brasão de armas da família. A carta não se encontra registada na Chancelaria. Lacuna documental que, de forma similar, é extensível a outros casos de conversos enobrecidos, que viam ser-lhes limpas e supridas as máculas de sangue israelita. A memória escrita, preservada pelos nobiliários, revela que em 1496 mestre João teria recebido as «armas» de D.Manuel I. Era comum o monarca galardoar quem se distinguia ao serviço. E não foram poucos os cristãos-novos que ao longo dos séculos XV e XVI alcançaram a dignidade de cavaleiros-fidalgos com brasão de armas. Um dos netos de mestre João, Tomé Pegado de Paz, testemunha à Inquisição portuguesa, em 1578, que teria transportado durante algum tempo um pergaminho constava os privilégios de fidalgo e cidadão do avô. [...]

Será que o pergaminho de que Tomé falava fazia referência ao brasão familiar? O texto do interrogatório a que o neto do físico foi sujeito na casa do capítulo da Inquisição de Lisboa, não é esclarecedor quanto a esse ponto. A descrição heráldica do brasão chegou-nos por outras vias. No Theouro da Nobreza das Famílias Gentílicas do Reyno de Portugal, editado em 1799, Frei Manuel de Santo António, assinala que a família Paz tinha “por armas, em campo azul quatro rosas de sua cor, refendidas e perfiladas de oiro acantonadas em anéis huma patena de prata; em 24 de Janeiro de 1496 em que se festeja a Virgem Nossa Senhora com o título de Paz, e por esta rosa tomou este apellido; instituiu morgado e descendem delle alguns fidalgos da província do Minho.”

[...] a palavra «Paz» em hebraico tem um significado que não só o da sua etimologia em português, significando “brilho”, “prateado”. [...]

Voltando ao nome da família, e ao que poderá ter significado com a sua atribuição, Leite Vasconcelos defende que «Paz» talvez fosse uma derivação do hebreu xalóm. Na Holanda aparecerá com frequência o apelido Salom, nos judeus portugueses, cuja definição em hebraico é «paz», correspondendo deste modo à significação ao sobrenome e apelido português, segundo aquele etnógrafo.

IV INQUISIÇÃO E INTEGRAÇÃO

1. Entre a Integração e a Assimilação Forçada

António José Saraiva defendeu de forma polémica que a Inquisição “fabricava” judeus, com o intuito de jogar mão dos bens e cabedais de um estrato social bem demarcado em ascensão: a burguesia. [...]

De 1530 em diante estão a dar-se na sociedade portuguesa, justamente, essas mudanças estruturais que conduzem ao bloqueio das forças mais activas. Estamos perante uma sociedade que quer segurar a todo o custo os privilégios dos estratos tradicionais que permaneciam secularmente no topo. A nova dinâmica empreendida por famílias conversas como os Paz, representava de certa forma uma ameaça que era necessário afastar, para a hierarquia de privilégios poder continuar a reproduzir-se. Daí a Inquisição representar a chave para defender o ponto de vista do grupo que funcionava como sujeito histórico. Nessa instituição cabiam o medo, o ódio, a inveja, as falsidades, a denúncia mesquinha. As visitações que o Santo Ofício fazia a uma determinada região, rodeadas de simbolismo, pompa e circunstância, serviam para lembrar aos habitantes desses lugares a sua omnipresença, o seu poder, provocando dessa forma um maior volume de denúncias.

[...] No inventário dos processos da Inquisição, na concepção e construção das árvores genealógicas, vasculhando infindas massas documentais o investigador mantém viva, afinal, a origem social e religiosa daqueles em cujas veias corria sangue hebraico. [...] É certo, com um sentido completamento oposto ao do inquisidor, e ainda que, como sublinha Prins Solomon, o historiador «marranista» conceda a sua simpatia às vítimas «marranas» da Inquisição, que é proporcional à sua solidariedade para com o «povo judeu», incluindo conversos, gente da nação, cristãos-novos, o seu objectivo final é compreender de que forma se processou os fenómenos de exclusão e discriminação social, e como actuou a Inquisição.

A actividade da Inquisição portuguesa está documentada por cerca de 40.000 processos, pelas denúncias que foram registadas uma após a outra, de vizinhos e parentes, pelos cadernos do promotor, por habilitações que eram feitas para ilustrar a honra, pela correspondência trocada entre os vários tribunais. Inicialmente, em 1536, coma bula que institui a Inquisição, o tribunal funcionou na diocese de Évora, onde residia a Corte. Em seguida passou a Lisboa. Em 1541, com o intuito de vigiar e punir os que eram acusados de heresia, foram criados quatro tribunais, no Norte e Centro do País: Porto, Coimbra, Lamego e Tomar, que se juntam a Évora. Mas a estrutura deste tribunal religioso, não se vai manter uniforme, nem no tempo, nem no espaço. Em 1548 apenas funcionavam dois tribunais: o de Lisboa que cobria o Norte e o Centro do Reino; e o de Évora que tinha a jurisdição do todo o Sul. Em 1560 estabeleceu-se a Inquisição em Goa, em 1565 é finalmente constituído o tribunal de Coimbra, que passou a cobrir todo o Norte e Centro do espaço metropolitano português.

Construindo uma ampla rede de denunciadores, a Inquisição funcionou como um autêntico aparelho ideológico repressivo, instrumento do poder eclesiástico e nobiliárquico, ao serviço de um Estado que se reforçava e burocratizava, mas que defendia tenazmente um certa ordem social baseada no estatuto e no sangue. [...]

2. A luta contra o estabelecimento da Inquisição – Duarte de Paz um líder dos cristãos-novos em Roma (1532-1538)

A partir de 1532, e sensivelmente durante os seis anos seguintes, o filho mais velho de mestre João vai desdobrar-se em contactos junto do Papa e dos principais Prelados da Santa Sé; luta em prol dos direitos dos cristãos-novos, contrariando a acção dos diplomatas ao serviço de D. João III; e negoceia e obtém algumas bulas. [...]

Como se posicionam as várias famílias de cristãos -novos diante do novo panorama? Em 1532, Diogo Mendes é preso em Antuérpia, e nesse mesmo ano Duarte de Paz aparece em Roma. [...] Quanto a Duarte de Paz e à sua família, que se concentrava no Porto, vão entrar num período de dificuldades, em que se salvará os lugares que dispõem na Alfandega do Porto e pouco mais. [...]

[...] publicação da bula da Inquisição, a 22 de Outubro de 1536. [...]

Em Roma, entretanto, decidi-se o futuro de muitos negócios, da liberdade de actuação, dos futuros alinhamentos políticos e clientelares, entre os anos de 1532- 1536. Duarte de Paz não foi o único membro da família Paz a interessar-se pela questão da vinda da Inquisição para Portugal. Em meados de 1536, Diogo de Paz contacta o núncio da Santa Sé, Marco della Ruvere, que se encontrava em Braga, para se inteirar das negociações quanto à vinda para Portugal da Inquisição. [...]

Depreendemos que no Porto os cristãos-novos estavam ansiosos por saber do andamento das negociações, entre a Santa Sé e Portugal, sobre o estabelecimento da Inquisição em território português. Este interesse de Diogo de Paz, leva-nos a pensar que a família de mestre João - que ainda se encontrava vivo, mas muito doente, funda nesse ano a capela em S. Francisco - temia a vinda do tribunal religioso. Porque razão? Teriam abandonando os ritos judaicos? Ou pressentiriam que a partir do momento em que a Inquisição entrasse em solo português jamais teriam descanso? [...]

O mesmo tipo de raciocínio se aplica à partida, mais tarde, de Tomé Pegado de Paz, filho mais velho de Duarte, para a Turquia, quando os Mendes Benveniste (Nasci) para aí se deslocarem na segunda metade do século XVI. É a partir desse espaço que os Nasci vão dominar uma ampla rede de comércio e informação que se liga a vários pontos da Europa. [...]

Já a Inquisição havia entrado em Portugal, Duarte de Paz tenta acautelar a segurança da sua família obtendo, a 15 de Dezembro de 1536, um breve de isenção, para todos os membros, da pena de excomunhão e da jurisdição da Inquisição.

Em Roma, Duarte de Paz era muito bem visto pelo Papa e pelos Cardeais, o que é confirmado por D. Martinho de Portugal: “todos quantos há, cardeais e não cardeais, o fauorecem”. Oferecia festas e ostentava, com documentos comprovativos, a comenda da Ordem de Cristo, o que enfurecia o monarca que, perante a sua ausência, descarregou a ira sobre a família Paz. Em Roma, os enviados da Coroa recebiam a notícia que haviam sido retirados todos os títulos e honras ao converso português. Na Torre do Tombo, no acervo documental do corpo cronológico, encontra-se uma carta da autoria de Duarte de Paz. Datada de 10 de Junho de 1532, a missiva revela uma estratégia deliberada, por parte de Duarte de Paz, de ganhar o tempo necessário para que não se publique uma bula papal a autorizar o estabelecimento da Inquisição em Portugal. Com esse intuito, oferece os seus préstimos a D. João III e nega acusações de falsidade e conduta perversa, revelando inclusive aspectos militares e estratégicos relacionados com a construção de um castelo, por parte do Papa.

Entretanto, entrara em funcionamento o temido Tribunal (1536). Duarte de Paz, dispensado pela comunidade cristã-nova, nunca mais regressará a Portugal. De seguida é agredido violentamente por um grupo de homens mascarados que lhe infligem quinze punhaladas, em 1538. O cristão-novo defendeu-se bem, salvando-o uma armadura que trazia por debaixo da roupa. Socorrido de imediato, convalesce no Castelo de Santo Ângelo, sob os cuidados dos enviados do Papa Paulo III.

Recuperado, vai inicialmente para Ferrara, onde terá voltado a casar. No ano seguinte parte para Veneza.

Votado ao ostracismo pela maioria dos cristãos-novos desde meados de 1539, que o acusavam de utilizar indevidamente os dinheiros que lhe eram entregues, pressionado a abandonar Roma, desapontado, Duarte de Paz vai para Istambul. No Império Otomano, regressa ao judaísmo e adopta o nome de David Bueno. Acalenta a esperança de um dia voltar para junto da família. O que o leva a enviar epístolas sucessivas a D. João III. Mais uma vez, oferecendo serviços diplomáticos e de espionagem e denunciando cristãos-novos que, de Portugal, tinham ido viver e comerciar para o Império turco. Uma das cartas que até nós chegou, escrita de Alepo, tem a data de 1545, e faz referência a D. Afonso de Lencastre , que tomou o lugar de embaixador em Roma no ano de 1551. Como José Alberto Tavim reparou, há uma contradição nas datas que, em nosso entender, se ficou a dever, talvez, ao copista. E se assim foi, a missiva enviada por Duarte de Paz é expedida pouco tempo antes do seu filho chegar ao Império Turco (1552). Duarte de Paz nunca mais regressará a Portugal, acabando nos últimos anos de vida por se converter ao islamismo. Terá morrido por volta de 1553.

Diplomata controverso, que tentou inviabilizar o estabelecimento da Inquisição em Portugal, este líder sefardita teve um percurso de vida peculiar. Alcança algumas vitórias quando, com pouco tempo decorrido desde que chegara a Roma, é expedido, por Clemento VII, a 17 de Outubro de 1532, o breve Nuper Fidei Catholicae, que suspendia os efeitos da bula sobre a Inquisição e inibia o inquisidor-geral, Fr. Diogo da Silva, e outros, de atentarem contra os conversos; no ano seguinte, a 7 de Abril de 1533, é publicada a bula Sampiterno Regi, com perdão geral dos cristãos novos, recordando-se no texto que muitos de entre eles tinham sido coagidos a receber o baptismo cerca de quarenta anos antes. Estes documentos contrariavam as pretensões dos diplomatas de D. João III em Roma – D. Martinho de Portugal e o cardeal Santiquatro, mas não impediram a vinda da Inquisição para Portugal, anos mais tarde (1536). A Coroa portuguesa via satisfeitas, dessa forma, a suas pretensões.

3. Os Vizinhos que nos acusam. A sobrevivência social

[...] Para suprimir o deficiente cofre das finanças públicas, a Coroa vai contrair empréstimos. Alguns credores são cristãos-novos. Mestre João de Paz, vai cobrar uma dívida à Coroa, fazendo-se procurador de Luís Vaz de Negro, a 9 de Dezembro de 1527, no almoxarifado da cidade de Bragança, que o físico conhecia muito bem. [...]

Um Estado confessional vai actuar contra as heresias pelo seu “braço” religioso, através de um esquema rígido de controlo dos comportamentos sociais, inquirindo, acusando, prendendo sem culpa formada, violentando indiscriminadamente aqueles que se haviam convertido em 1496-97 ao cristianismo, ou que se suspeitava que tivessem antepassados judeus. [...]

Escasseia a informação sobre a actuação do tribunal nos seus primeiros tempos. Os autos que foram levantados estão balizados pelas datas de 1541 e 1546, com uma maior acção dos promotores nos anos de 1542-44. As denúncias são de carácter mesquinho e ridículo. Muitos dos acusados encontravam-se ausentes, porque tinham demandado outras terras, para se sentirem mais seguros entre aqueles que partilhavam a sua condição. Lamego e Lisboa são locais escolhidos para a fuga à Inquisição portuense, mas Trás-os-Montes, pelo seu perfil físico e orográfico, merecia atenção especial.

[...] A extorsão de dinheiros, em quantidades exorbitantes, pelos prelados, é testemunhada pelos presos vindos de Bragança, Francisco Rodrigues, tabelião, e Gonçalo Lopes, mercador, que encaram a decisão do juiz vender as suas fazendas como algo injusto, resolvendo apelar para o Cardeal Infante D. Henrique. [...]

Durante o século XVI, foram aparecendo indícios de uma animosidade crescente para com os Paz. Em 18 de Outubro de 1501, depois de mestre João ter regressado, da viagem, supostamente, a Calecut, Vasco Fernandes, mercador, morador em Vila Flor, teve perdão do juramento falso que fizera perante os juízes da Vila, dizendo que não devia 200 reais a João de Paz, por soldada de certo tempo. Até o duque de Bragança, D. Jaime, entrava no rolo dos devedores. Em Santarém, no ano de 1503, mestre Tomás, cunhado de mestre João, fazia-se seu procurador para cobrar uma dívida que lhe pertencia haver, de certo tempo, do Duque. [...]

O crédito mal parado, as dívidas à família, sucediam-se, deixando antever tempos difíceis quando a Inquisição procurasse réus entre os conversos, motivando (falsas) denúncias, acusações e ajustes de contas.

Sucedia, também, que os serviços de Duarte de Paz a favor dos cristãos-novos, em Roma, durante os anos trinta do século XVI, enfureceram o monarca, que “nada podendo contra o ausente – descarregou a ira sobre a família (...)”: pais, irmãos, tios, cunhados, sobrinhos. A 9 Junho de 1542, passado que estava um ano desde a entrada da Inquisição no Porto, D. João III envia uma carta a D. Baltazar Limpo, com ordens expressas para que os parentes mais chegados de Duarte de Paz tivessem de abandonar Portugal num prazo de trinta dias. Caso não cumprissem a determinação régia, seriam condenados a dez anos de degredo na ilha de S. Tomé, sem remissão e com perda de toda a sua fazenda.

Conhecemos a resposta da Inquisição do Porto, que a 12 de Junho (de 1542) endereça uma carta ao Rei a informar que convocara, um a um, os elementos da família Paz que viviam na cidade, e os notificara, com um escrivão, da decisão régia de que teriam de abandonar o Reino.

Diogo de Paz, que liderava a família desde a morte de seu pai, resolve escrever directamente a D. João III. A sua carta, com a data de 15 de Junho de 1542, dá conta que fora notificado para sair de todos os “reinos e senhorios” do rei Piedoso, e abandonar os cargos que detinha. [...]

Diogo de Paz assumia a sua condição de descendente de pai e mãe, judeus, que se haviam convertido com muito agrado do Rei, e defendia-se fazendo prova do seu comportamento exemplar e das mercês que tinha amealhado por serviços distintos à Coroa.

D. João III recuou na sua decisão e revogou a medida que visava expulsar a família Paz dos seus “reinos”. Porque o fez? Muitas podem ter sido as razões. Era reconhecido o ainda muito poder que a família tinha na Alfândega do Porto, tal como no despacho e venda de mercadorias no Norte. Terão sido no entanto, muito provavelmente, as fortes influências que os Paz dispunham na Corte que tiveram uma acção determinante na revogação da pena régia.

Diogo de Paz augurou fazer o Rei retroceder, mas a Inquisição não iria dar tréguas à sua família. Escreveu Camilo Castelo Branco: “Em 1542 começou a perseguição à família Paz.”

A primeira notícia que nos chegou de um elemento da família apanhado nas malhas da Inquisição é relatada por André de Resende, o mesmo autor que conhecia a Descrição de Entre Douro e Minho de mestre António de Guimarães, e recebera lições de hebraico do flamengo Nicolau Clenardo na Universidade de Paris. O humanista eborense, na sua obra “Vida do Infante D. Duarte”, escrita em 1567, com dedicação ao Duque de Guimarães, D.Duarte, filho daquele Infante, reporta-se a um Fernão de Paz, moço da Corte, que era presença frequente numa casa que se dizia ser de um rabi e cujos familiares, mercadores que “guardavam o sábado”, recusavam levar roupa ao Paço nesse dia.

Preso pela Inquisição, Fernão de Paz não confessou quaisquer erros contra a fé, nem fez denúncias. Testemunhos posteriores revelam que se suicidou, mas também houve quem defendesse, ao tempo, que lhe administraram peçonha para que não revelasse o que outros (cristãos-novos) receavam ser descoberto e sabido. O testemunho é de André de Resende.

André de Resende relata-nos um episódio que se passou na Corte envolvendo Fernão de Paz, um dos filhos de mestre João, tratando-o somente por “Paz”. Fernão, moço da câmara da rainha D. Catarina, trouxera de Braga um velho, que servia de bobo da Corte, a quem chamavam D. João, e que divertia as tardes e os serões dos infantes. Conta-se que um belo dia D. Duarte chamou Fernão de Paz para trazer o bobo, mas não o encontrou. Ficou o Infante então a saber que o Paz frequentava com assiduidade a casa de alguém, que se presumia ser um rabi. D.Duarte terá ficado colérico e preparou-lhe uma maldade - enfartou-o com uma grande espetada de toucinho. Uma ocasião procurando-o novamente e não o encontrando, replicou-lhe: - “Paz, avisa-te; não vás a casa de homem infamado de judeu e rabi”. Desta vez, o que D. Duarte preparou para se vingar, adquiriu laivos de crueldade e desumanidade. Embebeu um barrete novo, com uma borla amarela, em óleo de terebintina e coloco-o bem apertado sobre a cabeça do cristão-novo. A terebintina secou e o barrete não podia sair senão arrancando parte dos cabelos ou rapando-os.

A ter sido interrogado e preso pela Inquisição do Porto, sabendo-se a forma cruel e brutal como este tribunal religioso actuava, torna-se evidente porque é que veio a falecer nos calabouços do Santo Ofício.

Outros membros da família vão ser interrogados pela Inquisição. É o caso do rico mercador portuense António de Paz, chamado a testemunhar no processo de Henrique de Tovar e de sua mulher Isabel Lopes, a 9 de Março de 1541. [...]

António de Paz também verá a sua vida devassada pela Inquisição do Porto. Simão Gomes, seu sogro, que é mais tarde enterrado a seu lado na Sé Catedral da cidade, cidadão abastado, é acusado por uma criada de praticar a religião judaica. Condenado a três anos de prisão no dia 27 de Abril de 1544, foi libertado de seguida no mês de Outubro, por alegar sofrer de uma maleita grave. Para a sua libertação contribuiu, seguramente, o muito dinheiro e a influência do seu genro e da família deste. [...]

Uma sobrinha de António de Paz, Maria de Paz, filha de Francisco de Paz e de Isabel Rodrigues, depõe em 1542 contra Maria Teixeira, cristã-nova, moradora na rua das Taipas. Maria teve fama de testemunhar contra cristãos-novos. Acusavam-na de não honrar os seus ascendentes por se afastar dos preceitos da sua religião, casando-se com um cristão-velho, incriminações que rejeitava.

Muitos dos Paz, residentes no interior do Reino, não escaparam à sindicância da Inquisição. Lamego fora, desde o início da sua vinda para Portugal, um local de eleição para a família. Aí viviam alguns dos descendentes directos de Rui Mendes, o cunhado de mestre João de Paz, que virão a gozar das imunidades penais, negociadas em Roma por Duarte de Paz. [...]

Segundo os testemunhos de acusação, nos anos de 1543 e 1544, Isabel Mendes, residente em Lamego, na Rua Nova, casada com Heitor Mendes, filho de Rui Mendes, possuía uma casa que servia de “sinagoga das mulheres”; segundo outros depoimentos, praticava a circuncisão dos meninos, momentos depois de os nados terem recebido o baptismo na Igreja da Almacave. Acusações que a cristã-nova, que acaba por se refugiar na Galiza, negava, admitindo que “guardava os sábados”.

A filha de Isabel Mendes, Justa de Paz e o marido, Jerónimo Fernandes, vão ser alvo de delações e de processos que se arrastam pelos anos de 1543 a 1545. Nesses processos emerge a ferocidade dos seus inimigos, muitos deles concorrentes de Jerónimo Fernandes, mercador, rendeiro das sisas da cidade de Lamego, e de seus irmãos, Rui Fernandes, mercador, tratador das lonas, célebre autor “da descrição dos terrenos à volta de Lamego”, Jácomo da Fonseca e António da Fonseca.

Os ódios estão presentes nas denúncias efectuadas contra Justa de Paz e a sua família. O cunhado, Rui Fernandes, era alvo do ódio de Afonso Eanes, neto de Antão Rodrigues, antigo vereador do Concelho e seu inimigo capital. A razão de tamanha inimizade prendia-se com o facto de Rui Fernandes ter ido à Corte e obtido uma provisão do Rei para que Antão Rodrigues e seus parentes mais próximos não fossem vereadores.

Nesta “guerra” utilizavam-se os criados e os parentes para denunciar quem era inimigo. [...]

Jerónimo Fernandes, o marido da sobrinha-neta de mestre João, fora rendeiro das sisas de Lamego nos anos de 1536, 1537 e 1538 e 1539. E sendo assim rendeiro entrou num litígio com João Gonçalves, alfaiate, marido de uma das testemunhas de acusação de Justa de Paz. [...]

As acusações aos Paz persistiram nos anos seguintes. Até o prestigiado médico e professor catedrático da Universidade de Lisboa, Fernão Lopes de Paz, irmão de António de Paz, um dos muitos sobrinhos de mestre João, de cinquenta anos de idade, casado com uma filha de Tristão Alvares Nanias (que se encontrava fora do Reino), se vê na obrigação de dar contas à temível Inquisição. No dia 29 de Agosto de 1547 compareceu Fernão Lopes de Paz na casa da Inquisição de Lisboa, confessando ter visitado Nicolau Rodrigues, cristão-novo, morador na rua das Medas. Achando este enfermo e muito doente escreveu-lhe um testamento, em que era determinado que o moribundo, por vontade própria, queria ser sepultado, ou no mosteiro de Nossa Senhora da Graça, dentro do seu claustro, perto da campa de seu filho, ou junto da cova de Pedro Álvares, em terreno novo. Declarou Fernão Lopes de Paz ter redigido o testamento sem cuidar da incorrecção que estava a cometer. O tabelião Manuel Afonso conferiu força de lei ao documento, voltando às mãos do professor da Universidade de Lisboa. Naquele momento, em presença dos inquisidores, afirmava Fernão Lopes que verificando o erro que cometera, por ter passado a escrito uma última vontade de um cristão-novo, ficou tão irado que rasgou o documento. O académico antecipava-se ao Santo Ofício, acautelando-se de uma possível denúncia ou inquérito à sua actuação. Não se pode esquecer, também, que a auto denúncia funcionava para aquela sociedade, profundamente católica, como o único caminho para o indivíduo se preservar a si e à comunidade da ira de Deus, logo, era sempre um factor de desagravo.

Para fugir aos interrogatórios, à tortura e às labaredas da Inquisição, a família cinde-se. Uns preferem a diáspora, mas a maioria acaba por ficar a tomar conta dos seus haveres e na posse dos seus ofícios, mergulhando num difícil e complexo processo de recomposição social a partir de 1542. A sobrevivência social será possível, mas com um pesado custo para alguns dos seus elementos que, como constatamos, foram sacrificados aos interrogatórios dos inquisidores, quando não mesmo à morte.

4. Do Porto a Istambul. O Mare Nostrum, a Europa um só Espaço

Em Portugal permanecia a família Paz, agora liderada por Diogo de Paz, o segundo filho, na ordem de sucessão patriarcal, de mestre João, que, aos poucos, recompunha socialmente o grupo familiar do impacto perverso dos processos movidos pela Inquisição do Porto nos primeiros anos da década de quarenta do século XVI. Entre os que ficaram, encontrava-se um dos filhos de Duarte de Paz, Tomé Pegado, fruto do seu casamento com Catarina Pegada, natural de Elvas.

Em 1552 ou 1553 Tomé Pegado de Paz parte do Porto em direcção ao Império turco. Alegará mais tarde que foi em busca de seu pai, que aí vive exilado. Porém, Tomé Pegado chega ao Mediterrâneo ao mesmo tempo que os Nasci. [...]

Para abordar os contactos e as relações que se estabeleceram entre os Paz e os Nasci, nome que os Mendes Benveniste adoptaram na diáspora após retornar ao judaísmo, dispomos de uma fonte muito rica em informação: o processo de Tomé Pegado de Paz, preso pela Inquisição em 1578. É com base nos testemunhos aí desvelados que vamos construir o nosso discurso.

Tomé Pegado e a família Paz contavam, tudo aponta nesse sentido, com apoios e conhecimentos no interior dessas redes, até porque uma parte da família (Justa de Paz e Jerónimo Fernandes, sobrinhos-netos de mestre João) que se encontrava em Lamego vem a ingressar nessa fuga para Itália. [...]

A idade de Tomé de Paz, na verdade, devia ser superior a dezasseis anos em 1552. Se seu pai fora para Roma por volta de 1532, não voltando mais a Portugal, supõe-se que em 1552-53 teria não menos de vinte anos. [...]

Tomé Pegado, que se entregara à lei mosaica com o nome de Chahaom, primeiro, e Rabi David, depois, é incumbido de se deslocar à Corte francesa para arrecadar 150.000 cruzados a Carlos IX, no ano em que os turcos cercavam Malta (1565). As avultadas dívidas da Corte francesa aos Nasci haviam-se tornado um assunto de Estado, incómodo nas relações amigáveis entre o Império Otomano e a França. Joseph Nasci negoceia com o Sultão a melhor forma de cobrar o dinheiro, prometendo parte da quantia para os cofres do Império. [...]

No regresso, com a dívida cobrada, embarcando a bordo de uma galé que fazia a ligação entre Argel e Constantinopla, naufragou, contou João Fernandes ouvido pela inquisição. Um dos cativos puxou fogo à pólvora transportada a bordo, fazendo o navio explodir. Tomé Pegado de Paz salvou-se, mas perdeu as letras de cobrança do dinheiro que transportava consigo, e que eram pertença dos Nasci. Este terá sido, ainda segundo aquele testemunho, o motivo de ruptura entre o cristão-novo e o Duque de Naxos, levando-o a converter-se ao Islão.

Pouco antes de ser deportado para Portugal, como escravo de uma galé, Tomé Pegado de Paz acabara de fazer um percurso muito próprio dos elementos destes grupos. Inicialmente aceitara o judaísmo; em seguida adoptara o islamismo como sua fé, explicando que tornar-se muçulmano lhe trazia vantagens, libertando-o do cativeiro onde estivera dois anos, segundo a sua confissão, devido a uma dívida que ficara por solver a Joseph Nasci. Finalmente, regressou novamente ao judaísmo, sendo nessa condição preso em Florença. [...]

Há, nas andanças do neto de mestre João, algo de semelhante aos relatos de outros portugueses que se haviam espalhado por rotas e caminhos, regiões e espaços longínquos do mundo, após a abertura planetária propiciada pelas navegações dos séculos XV e XVI. [...]

Mas o caso de Tomé de Paz difere, em parte, dos dois exemplos anteriores. Desde logo, porque era filho de um cristão-novo. Acontece que os descendentes de judeus convertidos eram objecto de várias formas de discriminação por causa da sua “impureza de sangue”, e olhados com desconfiança em matéria de fé. Como notou António José Saraiva, os cristãos-novos procuravam iludir as normas vigentes, tentando escapar à discriminação. Como? Mudando de nome, utilizando o dinheiro e o casamento, transferindo os bens e a família de lugar e região, quando necessário. [...]

Constam do “Livro de Juros” da Misericórdia do Porto, registos com data de 1586/87 de tenças a cobrar a particulares por António de Paz, que está em Madrid como representante da “Santa Casa”. O antropónimo sugere tratar-se de um parente, se não mesmo de um neto, de António de Paz, sobrinho de mestre João. E, pelas relações que a família tinha com a instituição, não nos pode admirar este parentesco. Para situações que exigiam perseverança, António de Paz actuava em Madrid ao serviço da Misericórdia: cobrando dívidas, recolhendo fundos, tratando do património imobiliário da instituição.

Outros indivíduos com o nome Paz são citados por C. Boyjian, como estando infiltrados nas redes comerciais internacionais na Holanda e noutros locais de grande actividade comercial, no início do Século XVII. Alguns naturais do Porto. Por enquanto ainda não se encontraram quaisquer conexões com a família Paz.

Outros Paz, do Porto, distinguiram-se no mundo mercantil, certamente com ascendência na família de mestre João de Paz. Álvaro de Azevedo, nascido por volta de 1582 em Caminha, tinha como seu pai Miguel Rodrigues de Azevedo, sendo a mãe Joana de Paz. Os avós maternos eram Jorge Luís e Violante de Paz, o que nos faz pensar que estamos perante um tronco familiar de Duarte de Paz. Os locais de nascimento e residência são os mesmos; e similares são os nomes e a actividade, mercantil e financeira, o que denota uma longa, muito longa tradição familiar em funções de trato geradoras de riqueza.

CONCLUSÃO

Na segunda metade do século XV cruza a fronteira portuguesa, vinda de Castela, uma família de judeus. Inicialmente estabelecem-se em terras do Duque de Bragança. É em Guimarães que residem até cerca de 1515. Entretanto, as condições de desenvolvimento comercial e financeiro levam o núcleo central da família a ir viver para o Porto em meados da segunda década do século XVI, onde os seus membros se vão associar às famílias mais influentes do burgo. [...]

Será mera casualidade Duarte de Paz receber da “mão” do banqueiro Diogo Mendes e da sua cunhada, viúva de seu irmão Francisco, fundos para defender a causa dos conversos em Roma? E que dizer da partida de Tomé Pegado de Paz para a Turquia, precisamente no mesmo ano, 1552, em que Grácia Nasci para aí se desloca? Porventura, as ligações entre os Paz e os Nasci, são muito mais profundas do que à primeira vista possam parecer. [...]

[...] Tomás Martins, um Paz, filho de mestre João, que em tempos exercera o cargo de cirurgião do duque de Bragança. [...]

Ávore genealógica

Texto completo:

VALENTIM, Carlos Manuel. Uma Família de Cristãos-Novos do Douro e Minho: Os Paz

VALENTIM, Carlos Manuel. Uma Família de Cristãos-Novos do Douro e Minho: Os Paz (PDF)